Bom, aquela minha proposta inicial no tópico fechado do Persona não morreu. Graças àquele tópico, me recomendaram alguns ótimos filmes e ainda baniram o Bereuza. Então é só alegria!
Ó o tópico original!
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PERSONA (1966) – Este é meu filme preferido do Ingmar Bergman e no placar geral do meu ranking pessoal é top 10. É um filme sobre como nós anseamos por sermos expostos e aceitos pelas outras pessoas da forma com nós nos conhecemos, sem máscaras, sem personagens: desejamos a “nudez espiritual” e a aceitação dessa nudez. “O inútil sonho de ser... não parecer, mas ser!”
Alma (Bibi Andersson), uma enfermeira, é encarregada de dar cuidados à Elizabeth Vogler (Liv Ullmann), uma atriz que, durante uma encenação de Electra, pára de falar. A mudez de Elizabeth é voluntária, de modo que os esforços de Alma para conversar são sempre frustrados pelo silêncio de Elizabeth.
Apesar de todo o esforço da enfermeira para puxar conversa, Elizabeth está decidida a não falar, pois ela percebeu que tudo o que diz é encenação, tudo é um ato teatral onde a atriz não fala verdadeiramente. A vida é um teatro, e o teatro é composto por personagens fictícios, personas. Então, ao decidir parar de falar, Elizabeth está tentando parar de encenar, o que significa parar de mentir.
Há um belíssimo momento no filme quando Alma liga o rádio e está sendo transmitida uma peça dramática: Elizabeth, deitada à cama, começa a rir enquanto a atriz, ao rádio, lamenta. O drama vira comédia porque é falso, é atuação. Pouco depois dessa cena, Alma sintoniza numa transmissão de música e sai do quarto: a partir daí, Elizabeth sente diretamente o efeito da música e não ri, pois não há mais motivos para rir, a música não mente: é a própria vontade se manifestando (falarei disso melhor na resenha de Sonata de Outono).
Após um primeiro ato numa clínica (ou casa de repouso, não sei ao certo), Alma e Elizabeth vão para uma casa de praia, onde poderão se conhecer melhor e passar todo o tempo juntas, com a intenção de que isso possa acalmar Elizabeth e fazê-la voltar a falar.
Entretanto, Elizabeth mantêm-se firme em sua decisão e nada diz; ao contrário de Alma, que, tendo percebido que Elizabeth ainda não falava - mas se mostrava interessada em ouvir - passou a falar como se estivesse tendo um diálogo interior. O conforto que a companhia de Elizabeth dava à Alma era deixá-la falar livremente sobre qualquer assunto, sem repreendê-la; ao passo que o conforto que Alma dava à Elizabeth era justamente falar como se estivesse só, podendo ser ela mesma, e não uma persona, não um personagem. Alma atinge uma confiança tão grande em sua ouvinte que conta um grande segredo envolvendo adultério, uma orgia e um aborto. (Aqui vale abrir um parêntese para dizer que eu tive uma ereção somente em ouvir toda a história contada no tom de voz de Bibi Andersson, sem nenhuma imagem de conotação sexual. Somente Alma e sua confissão. Meu deus! Que falas, que falas! Muito mais elegante e sensual do que seria se feito com flashback).
Entretanto, posteriormente Alma descobre que Elizabeth havia escrito esse segredo em uma carta e endereçado a outra pessoa, expondo a verdadeira Alma, a Alma que fez uma orgia e abortou um filho. A partir daí, as duas entram em um conflito e eu começo a babar na perfeição de cada cena. Coisa de gênio:
(Alma colocando um caco de vidro para que Elizabeth pise)
O embate psicológico entre Alma e Elizabeth me levam a concluir que elas são personas da mesma pessoa; mas tem muita gente que discorda. Então assista e tire suas conclusões, pois esse filme é espetacular.
Por fim, devo dizer que os créditos iniciais de Persona é uma das coisas mais legais que já vi. Cheio de simbolismos, um cacete que aparece por meio segundo durante uma contagem, uma personagem em desenho que faz o famoso banho tcheco, espirrando água entre as pernas e depois no rosto, o sacrifício de um carneiro, uma crucificação simbolizando o sacrifício de Cristo etc. Eu não entendo porra nenhuma, mas acho interessante.
Nota: 9,8
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MORANGOS SILVESTRES (1957) – Eu acho esse filme bem mais leve do que Persona, talvez porque Isaak Borg (Victor Sjöstrom) é um velho que me cativou. Mas o conteúdo é mais denso. É um filme sobre memórias e nostalgia, mas é principalmente sobre o fracasso pessoal apesar do sucesso profissional. (Talvez uma relação com o próprio Bergman)
Isaak Borg é um professor aposentado que vai ser homenageado com um título honorário em Lund. Um dia antes da viagem, ele tem um sonho. Um pesadelo, aliás:
No pesadelo, uma carroça bate em um poste de uma cidade deserta, perde uma roda e deixa cair um caixão com a porta semi-cerrada. Para fora, uma mão. Isaak se aproxima, e a mão o segura. O defunto é o próprio Isaak.
Há diversas interpretações sobre esse sonho espalhados por aí web afora, mas eu acho que para essa minha pequena e humilde resenha basta saber uma coisa: a sensação de solidão que as cenas do sonho provocam não podem ter outra função senão a de mostrar a condição de Isaak Borg, ou seja, como ele se sente; e a partir daí é possível perceber que ele se sente só e próximo da morte. Parece bastante simplório o que estou dizendo, mas a essência real do sonho é essa e não precisa ficar dando piruetas para entender isso após assistir ao filme.
Então, no outro dia, Isaak decide ir dirigindo até Lund, correndo o risco de chegar atrasado, pois havia decidido há muitos meses que iria de avião. Acredito que essa decisão esteja relacionada diretamente ao sonho no sentido de que Isaak parece querer adiar a sua chegada (pode ser uma analogia a “adiar a morte” ou algo do tipo).
Na estrada é onde podemos ver e contemplar o velho sentindo nostalgia. Ele passa por lugares onde morou ou esteve, relembra fatos marcantes de sua vida, revive momentos etc. No carro, com ele, está sua nora Marianne (Ingrid Thulin). Ela, muito sincera, diz o que pensa de Isaak, e o que as pessoas dizem para ela sobre ele. O velho, como disse o Quase Nada quando me indicou o filme em outro tópico, é “lafranhudo” (que não sei exatamente o que significa), meio ranzinza, chato, rabugento etc. Todos pensam isso de Isaak Borg. O próprio filho de Isaak (Gunnar Björnstrand) não o ama, apenas o respeita e teme. Enfim, Isaak é um fracasso na vida emocional e um sucesso na vida profissional, e durante a viagem o sucesso e o fracasso são colocados em uma balança.
Na estrada, a primeira memória de Isaak é sobre Sara (Bibi Andersson), seu grande amor. Contrapondo ao que todos acham do velho Isaak, a opinião de Sara sobre ele, na adolescência, era a de que Isaak Borg era gentil, sensível e honesto; ela se sentia mais velha perto dele, embora eles fossem da mesma idade.
Aí entra um ponto bastante interessante: tudo que Sara diz sobre Isaak Borg demonstra que ele tem uma personalidade introvertida (“Ele só tenta me beijar no escuro”), e que ele é culto e cheio de princípios. Mas ela se sente atraída por Sigfried, “que é muito excitante”. Todas as virtudes do jovem Isaak não foram suficientes para que Sara permanecesse com ele, então ela fica com seu irmão. A partir desse momento, Isaak torna-se ainda mais introvertido, e se fecha para qualquer relaçãos afetivas, com medo de sofrer novamente uma grande dor como esta; é daí que ele passa a ser o Isaak que todos posteriormente consideraram como egoísta, mal humorado e frio.
A viagem de Isaak Borg é como uma sessão de psicanálise, e o objetivo é recuperar suas memórias durante a estrada para enfim purificar-se. É mais uma história sobre redenção, mas está entre uma das mais belas.
Nota: 8,5
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O SÉTIMO SELO (1956) - Esse aqui não tem o ritmo tão lento quanto os citados acima; tem até alguns momentos de humor etc. A história é sobre um cavaleiro que volta das Cruzadas e descobre que sua pátria está infestada pela Peste. E quem senão a morte para recebê-lo?
É um filme sobre a insegurança espiritual, que é um termo que eu inventei agora para “quando estamos fodidos, doentes, pobres e meio ateus, onde a certeza da morte acaba por foder com tudo”.
O Cruzado (Max Von Sydow) sabe que a morte é inevitável, então decide desafiá-la no xadrez. Se ele vencer, sua vida será poupada. E ele tem um ajundante, fiel escudeiro ou coisa do tipo, interpretado por Gunnar Björnstrand.
Enquanto a morte e Antonius Block jogam xadrez, os dias vão passando e eles vão andando pela pátria do Cruzado. Daí encontram mais pessoas que aos poucos vão se juntando à comitiva; sempre uns miseráveis cuja morte é o único fim.
Infelizmente O Sétimo Selo não é um filme que eu quero falar muito, pois ele não é tão instigante e simbólico quanto os que foram citados aciam. Na verdade, O Sétimo Selo deve ser um dos filmes mais acessíveis do Bergman. Isso não quer dizer que é ruim, pelo contrário: o filme é uma beleza; mas ele é mais “óbvio” do que o Persona e Morangos Silvestres, exigindo menos ponderações etc.
Entretanto, há uma cena absolutamente linda que merece ser mencionada: durante uma apresentação de uma dupla de atores (Bibi Andersson e Nils Poppe), num palquinho, uma música sombria e crescente começa a causar tensão interropendo a música alegre cantada pelos atores. É um som meio lamurioso que a princípio você não entende de onde vem, nem o porquê. Os atores páram, os olhares assustados e a música crescente. Daí corta para uma cena de um percuso dos flagelantes, cantando algo em latim, creio eu, chicoteando uns aos outros, carregando uma estátua de cristo na cruz etc. É muito foda, muito mesmo.
Se você quer indicar um clássico para inicar algumas pessoas para que aprendam a gostar de filmes em preto e branco, O Sétimo Selo é ideal.
Nota: 7,0
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SONATA DE OUTONO (1978) – Este filme é cruel. Eu chorei. É sobre a relação conflituosa entre mãe (Ingrid Bergman) e filha (Liv Ullman).
A filha, Eva, casou-se com um pastor, Viktor (Halvar Björk), e os dois cuidam da irmã de Eva, Helena (Lena Nyman), que é deficiente. Helena tem uma doença degenerativa que a impede de andar e falar, motivo pelo qual sua mãe a havia abandonado aos cuidados de clínicos.
Charlotte, a mãe, é uma famosa pianista que pôs a família em segundo plano para poder dedicar-se à sua carreira. Ela não vê Eva há sete anos, e decidiu que devia visitá-la já que sua única compania havia falecido recentemente e ela se encontrava tão só.
Entretanto, Charlotte não sabe que Eva há algum tempo tirou a irmã do asilo para cuidar dela. E a revelação da “surpresa” é um dos momentos mais fortes do filme.
Uma das coisas mais interessantes desse filme é a diferença de personalidade entre Charlotte e Eva. As duas são exatamente iguais na tristeza, mas agem de forma diferente em relação a esta. Em outras palavras, elas são terrivelmente tristes e frustradas, mas exterioriorizam essa tristeza de forma diferente: a mãe, orgulhosa e forte, pisa sobre a tristeza com um pé firme e impetuoso; a filha, débil e melancólica, não consegue esconder sua fragilidade. Há uma cena nesse filme – e esta é uma das cenas mais bonitas que já vi – em que Eva pede para que a mãe a veja tocar piano, e então começa a tocar uma composição de Chopin. A interpretação dela é incrivelmente hesitante, tímida e introvertida mas não errada. E a mãe compreende isso imediatamente; ela sente a personalidade da filha enquanto a música se desenvolve. Em um auditório, por exemplo, todos vaiariam Eva. Mas Charlotte só consegue conhecer a filha naquele momento, naquelas notas hesitantes; e sua expressão de satisfação ao finalmente compreender a filha (pois as duas nunca estavam juntas devido às constantes turnês da mãe) é comovente.
Sabe aquela história de que um olhar vale mais do que mil palavras? Então...
Por fim, ao terminar, Eva leva a mão imediatamente à boca e a toca com o dedo indicador, como uma criança que espera aprovação. E pergunta: “Gostou?”. A mãe responde: “Gostei de você.” Eva, triste, percebe que a mãe não gostou de sua técnica, então pede para que lhe mostre como deve ser a verdadeira interpretação daquela composição.
Charlotte senta-se ao lado de Eva, e começa uma sumária, porem certeira, explicação acerca de Chopin. É aí que ela profere o password para desvendar sua personalidade: “Há dor, mas sem parecer”. E foi aí que eu enchi os olhos de lágrimas e proclamei Ingmar Bergman um gênio!!!
Veja só, mãe e filha ao piano, enquanto a mãe mostra o jeito certo de tocar. Olha as expressões faciais, Jesus!
“Você precisa ser persistente e emergir triunfante”, diz Charlotte.
Este filme é muito bonito, mas, como eu disse no início, cruel. A cena da discussão entre Eva e Charlotte, com a irmã deficiente a ouvir tudo, dá um nó na garganta que me desanimou por alguns meses de ver qualquer outro filme do Bergman. E o pior é que estou falando sério. A última vez que fiquei assim chocado, evitando filmes melancólicos, foi quando eu assisti “O óleo de Lorenzo”, mas eu tinha nove anos. Sonata de Outono é filme pra fazer marmanjo chorar, é o tipo de filme que eu evito assistir no cinema para que as pessoas não pensem que sou uma bichona.
Nota: 8,0
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Minhas considerações sobre o Bergman: Gênio.
O próximo diretor: Richard Linklater
“Por quê?” – Porque se eu for chorar, que seja de alegria!