Imagens, links, e boniteza em geral, no post completo do filme*log
---
As mutações da adolescência
Já faz algum tempo que eu não acompanho quadrinhos com a seriedade de antes (eu era fanático quando criança). Leio bastante prosa, vejo muitos filmes, jogo um pouco de videogame, acompanho algumas séries de TV, ouço música até demais...mas por algum motivo parei de ler quadrinhos. Eu nunca tinho ouvido falar do trabalho de Charles Burns, e isso até que é bom: o principal trabalho dele, Black Hole, demorou dez anos para ser concluído. A primeira edição foi publicada em 1995, e a décima segunda e última em 2005. Eu teria ficado muito irritado de ter que esperar 10 anos para ver a conclusão dessa HQ, que eu pude ler inteira em um dia. E que é fenomenal.
Fui atrás dos quadrinhos motivado pelo filme recentemente anunciado. Neil Gaiman e Roger Avary vão roteirizar, Alexandre Aja vai dirigir. Aja, diretor de Haute Tension - cuja primeira metade é plagiada, na maior cara dura, da primeira metade de Intensity, do Dean Koontz -, e do remake de The Hills Have Eyes, com certeza é a escolha errada. Competência técnica ele tem, mas a julgar por Haute Tension faltam a sensibilidade e inteligência necessárias para se adaptar Black Hole. De qualquer modo, o futuro filme não tem muita relevância. Pode ser que seja bom, pode ser que seja ruim...o que importa é que os quadrinhos são estupendos. Achei Black Hole impactante desde a primeira página, e quando virei a última, tive a convicção de que foi uma das melhores HQs que eu já li. É uma história grotesca, surreal, e muito, muito triste e deprimente. A arte, de traços carregados, tem um visual ao mesmo tempo caricato e realista que é difícil de descrever. Os quadros são elaboradíssimos, mas paradoxalmente simples, brincando muito com simetrias bizarras, amplificações de objetos, e ângulos tortos. Só pelo aspecto visual agressivo, um tanto expressionista e carregado em simbologia, já vale a pena ler. O efeito cumulativo das 12 edições faz jus ao título da obra...parece que você está sendo mesmo sugado para um buraco negro, de onde nunca mais vai sair. É opressivo e perturbador.
Parece uma versão de Anos Incríveis, feita pelo David Cronenberg, depois de se entupir de ácido e maconha. A história acompanha um grupo pequeno de personagens, em uma versão alternativa dos anos 70, na qual existe uma doença que apenas infecta adolescentes, transmissível via contato sexual, causando uma série de mutações diversas. Algumas pessoas ficam inteiramente deformadas, enquanto outras conseguem se passar por gente normal...dependendo da roupa vestida. De um lado, uma menina cresce uma cauda, um rapaz cria uma boca no peito, e outra garota fica com membranas entre os dedos. De outro, deformações faciais e corporais violentas tornam alguns meninos e meninas tão deformados, que, rejeitados pela sociedade, acabam formando uma colônia em uma floresta perto da cidade. Ah, a doença também causa algumas alucinações terríveis, eloqí¼entemente desenhadas por Burns.
Black Hole é narrado a partir do ponto de vista de um rapaz, Keith, e uma menina, Chris. Ambos, em momentos diferentes da história, acabam contraindo a doença. Acompanhamos a paixão de Keith por Chris, nunca concretizada, enquanto vemos Chris ter um romance trágico com outro rapaz infectado, Rob, e seguimos esses personagens até seus destinos, que não são conclusivos...Black Hole termina quando Keith e Chris deixam a adolescência para trás, como se os personagens não importassem mais dali em diante. É um fiapo de narrativa, se você for ver bem, apesar de um elenco de personagens coadjuvantes até certo ponto bem desenvolvidos, e pelo menos uma sub-trama. Mas é uma narrativa de peso, que chega quase a ser um pouco traumática, e que certamente é inesquecível.
Não sei se a intenção de Burns era retratar a adolescência como um período de trevas na vida de todos nós (e uma doença necessária), mas a impressão que ficou foi essa. Talvez o grande mérito de Black Hole seja fazer você lembrar de como foi, e temer como ficou. Talvez por isso seja tão desconcertante.
Essa HQ é a melhor obra de horror que eu tive o prazer de ler, em anos. Horror biológico, que te pega pelo estômago e pela cabeça, e se instala nas suas entranhas. Para sempre.