Existem certos momentos em que nos deparamos com uma obra de cunho artístico com algumas características que o tornam tão especial, que sabemos que vão nos marcar de alguma forma. Lembro que isso comigo quando assisti "Seven" e "Quero Ser John Malkovich" no cinema. Foram sessões de cinema inesquecíveis, devido ao soco no estômago emocional que ambos os filmes causaram em mim. A mesma coisa aconteceu quando terminei de ler "The Man in the High Castle" pela primeira vez, ou a primeira audição de um disco como "Ok Computer" do Radiohead. São todos obras de impacto, que deixam alguma marca no espectador/leitor/ouvinte. Bem, games fazem isso também - e BioShock é a prova disso.
A primeira coisa que chama a atenção no game é que ele realmente faz juz ao título de "sucessor espirtual do System Shock 2". Existem dezenas de similaridades entre os jogos, desde a ambientação (em um espaço confinado), até o desenvolvimento da história (enquanto no BioShock você aprende o que aconteceu atráves de audiologs, System Shock tem um recurso semelhante para contar sua história usando e-mails), além do gameplay mais aberto. Até a presença de fantasmas, que repetem eventos trágicos do passado (marcantes no jogo anterior), estão presentes aqui.
Ainda assim, BioShock não é nem de longe um mero reaproveitamento de conceito, mas um jogo - um jogaço - com personalidade muito própria. SS2 estava mais para um action RPG, com um HUD cheio de coisas enchendo a tela e até janela de inventário. BS sacrifica tudo isso para um gameplay mais dinâmico, mais flúido, voltado a ação. O que não quer dizer que o jogador esteje limitado como num FPS tradicional, embora a força do hábito faça você acreditar nisso nos primeiros minutos do jogo. Eu comecei a jogar muito como um shooter normal, e ele pode ser jogado assim, se o jogador quiser. Mas depois que se pega o ritmo da coisa, percebe-se que pode-se ir muito, muito além disso. Pra início de conversa, a munição é escassa, e se você pensa em jogar confiando só em suas armas, saiba que vai precisar de uma excelente pontaria, já que nenhuma bala deverá ser disperdiçada. Por isso você tem a disposição dezenas de "plasmids" - modificações genéticas que conferem poderes especiais ao jogador - que sozinhas não são tão letais quanto uma shotgun, mas se usadas com esperteza, podem ser mais eficientes do que até mesmo seu lança-granadas. Por exemplo, existe um plasmid que permite ao jogador causar descargas elétricas... por quê não então provocar alguns inimigos, atraí-los até um dos vários setores inundados de Rapture, e de um lugar seguro, soltar a descargar na água e matar todos eletrocutados?
Fora o próprio ambiente, que pode ser usado com arma - como hackear uma turret para que ela reaja e ataques os inimigos, ao invés de você mesmo. Ou programar alguns bots desabilitados para que eles o protejam. O fato é que existem diversas maneiras de se confrontar os hostis, e cabe a você estudar a mais eficiente para o cenário em questão. Os inimigos, por outro lado, também possuem plasmids e vão usá-lo contra você. São inteligentes, e sabem usar o cenário a favor (embora eu já tenha visto AIs melhores, como no F.E.A.R.). E também surgem aleatóriamente, e nunca de lugares pré-definidos, aumentando o suspense.
Apesar disso, BioShock não é exatamente um jogo difícil, ao menos para um jogador experiente no gênero. Os controles para a versão de 360 são muito bons, e eu não senti a menor falta do combo teclado+mouse. Alguns mecanismos que o jogo te dá, como carregar até 9 first-aid kits e usá-los instantâneamente, e o uso das Vita-Chambers, que te ressucitam imediatamente após você ser abatido num checkpoint próximo do lugar onde você tombou, tiram muito do desafio. Outra coisa são os chefes, muito fáceis. O vilão do jogo, o último chefe, matei de primeira, e sem muito esforço. Isso tudo jogando no Medium, vou começar o jogo de novo no Hard (mesmo por que tem um achievement pra quem zera nesse modo, "Seriously Good At This"), e aproveitar para ver o final alternativo (o jogo tem dois, o que você assiste depende dos seus atos no decorrer da trama).
Por falar em trama, BioShock tem provavelmente a melhor a história já vista em um jogo desse gênero. Pra quem não sabe, o jogo narra a saga de um sobrevivente em desastre de avião no meio do oceano, que encontra uma misteriosa entrada para um mundo subterrâneo (não, não é Lost!). Esse mundo é Rapture City, uma cidade com um objetivo utópico: ser uma sociedade perfeita, onde os homens tem liberdade para serem grandiosos e fazerem grandes atos, ainda que isso viole qualquer código moral ou ético. A arte não é censurada, e tudo pode ser feito em favor da ciência, sem questionamentos. Contudo, tudo que nosso protagonista encontra é um lugar deserto, em ruinas, o que restou da grandiosa Rapture após alguns eventos catastróficos, sobre os quais você vai aprendendo sobre durante o decorrer do jogo. É uma trama bem adulta, com um forte elemento de conspiração política, e muito bem escrita, com a merecida dose de profunidade e personagens complexos e ambíguos. A própria presença do jogador é justificada durante o decorrer da história, mas falar mais do que isso seria um baita spoiler. Posso dizer, portanto, que apesar do final meio abrupto (porém totalmente satisfatório e coerente - e emocionante!), BioShock tem uma das melhores histórias em um game desde o final da era de ouro dos adventures. Na verdade, acho que tirando os Metal Gear Solid, não lembro de nenhum outro jogo recente com um roteiro tão bom.
Uma parte crucial do desenrolar das coisas, inclusive, está diretamente ligado ao modo como você lida com um grupo especial de habitantes de Rapture: as Little Sisters e os Big Daddys. As Sisters são meninhas (sim, criancinhas mesmo), alteradas genéticamente com o objetivo de extrair Adam (substância que permite ao ser humano absorver mais plasmids, foco da obsessão na cidade) de seres mortos. E os Big Daddys tratam-se de brutamontes assustadores criados exclusivamente para proteção das meninas. Esses dois personangens são essenciais não só em termos de desenrolar da história, como de gameplay também: a única maneira de se conseguir Adam para seus plasmids é através das Sisters, e isso pode ser feito de dois jeitos: matando-as ou salvando-as. A primeira opção te dá o dobro de Adam, o que é bem tentador, mas a segunda traz outras recompensas mais pra frente. É claro que fazer qualquer uma das duas coisas não sera tarefa fácil, visto que invariavelmente você terá que passar pelo Big Daddy primeiro, e ele é o tipo de inimigo mais durão do jogo. No começo você vai apanhar muito dele, mas aos poucos vai aprendendo a lidar com os gigantes, e lá pelo final já não é difícil matar um desses. Mas o mais interessante dessa dupla, é o comportamento da mesma: sem sacanagem, é emocionante observar os Daddys com as Sisters. O monstrego abrutalhado e desengonçado realmente se preocupa com as menininhas (que por sinal, realmente se comportam como crianças, e é de partir o coração a idéia de ter que matar uma delas - por isso salvei todas), e é muito meigo e emocionante vermos o bichão tentando ser gentil com as pequenas, levantando as docemente para que possam entrar num dos vários pequenos dutos que elas usam para deslocamento. Os Daddys são realmente personanges tão icônicos e marcantes quanto prometem, e certamente nenhuma lista de "melhores inimigos em jogos" daqui pra frente estará completa sem eles.
Muitos reviews tem colocado que BioShock é um jogo curto, e isso é meio relativo. Dá pra você terminar o jogo entre 15 e 20 horas, se você se apressar para cumprior os objetivos e não perder tempo explorando. Por outro lado, se você for do tipo que explora cada centimetro cúbico do jogo (como eu), você terá algumas belas surpresas (e conquistará alguns belos achievements), e terá jogado por umas boas 20 - 25 horas. O jogo tem um alto fator replay também, graças ao inesperado que circunda os corredores de Rapture.
Por fim, sobre a parte da apresentação, podem dizer que BioShock é um triunfo artístico: a atmosfera do jogo é incrível, Rapture é uma cidade belíssima, toda construida com um estilo Art Deco, de encher os olhos mesmo. A primeira vez que vemos a cidade em todo seu esplendor é inesquecível, e ela não cansa de impressionar, mesmo lá para os últimos nível. A trilha sonora (que pode ser baixada aqui) é perfeita, totalmente orquestrada, com belíssimos arranjos de violinos e um clima melancólico que combina perfeitamente com ambientação do game. Vale dizer que não é um jogo apavorante, como seu sucessor (eu não consegui terminar System Shock 2 de tão nervoso que eu ficava), mas tem alguns momentos de gelar a espinha, como boa parte do trecho em Fort Frolic. Mas no geral é um jogo mais creepy do que scary, e é um jogo triste e trágico.
BioShock é uma verdadeira obra-prima do videogame-arte, um jogo inesquecível, marcante, daqueles que você torce pra não acabar nunca, e quando acaba, sabe que não vai esquecer dele tão cedo. Sem sombra de dúvida, o melhor jogo para XBox 360 (até Metal Gear Solid 4, quem sabe?).
"No Gods or Kings... Only Man".
Nota: 9,8
PS: Perdoem pelo tópico repetido. Eu sei que já havia criado outro sobre o jogo, mas ele é tão foda que merece mais um.