Indústria fonográfica processa compartilhadores de arquivo no Brasil
Era questão de tempo: a IFPI anunciou ontem que irá começar a processar usuários de redes p2p também no Brasil. Estão tocando 8000 legal actions (categoria um tanto ampla) ao redor do mundo, envolvendo 17 países. Além do Brasil, a indústria fonográfica atuará pela primeira vez no México e na Polônia. Em território nacional, quem irá cuidar dos processos será a ABDP, que em entrevista coletiva mencionou, além de alguns dados numéricos altamente questionáveis, a intenção de processar vinte usuários de redes de compartilhamento. Todos, supostamente, em dado momento disponibilizaram para upload algo entre 3000 e 5000 músicas. A ABPD não parece estar interessada em quem tem disponibilizado um punhado de discos apenas.
Não se sabe muito bem, até agora, o que de fato ocorrerá, ou mesmo qual a estratégia jurídica da ABDP. O fato de que o CTS (Centro de Tecnologia e Sociedade) da FGV-RJ, apesar de previamente inscrito, foi barrado da coletiva da ABPD, sinaliza que a intenção é espalhar desinformação sobre quais ações serão tomadas. Ao que tudo indica, o objetivo da ABDP é, ao mesmo tempo, testar qual vai ser a resposta do Judiciário para os casos, e intimidar usuários de diversas redes. Shock and awe. A imprensa nacional, em questões de propriedade intelectual, costuma repetir press releases sem o menor pudor e senso crítico. Uma parte que enxerga a situação por um outro ângulo é então impedida de participar da coletiva, por motivos óbvios. Quanto mais desinformação é espalhada, melhor para a indústria fonográfica.
De uma vez, foram mencionadas na coletiva não apenas transferências via torrent, mas também compartilhamento nas redes ed2k e, surpresa, Soulseek. Parece-me difícil alguém compartilhar mais de 3000 músicas via torrent, porque simplesmente não é eficiente. Acho mais óbvio os usuários futuramente processados terem disponibilizado as músicas por meio das redes ed2k e Soulseek, nas quais é mais fácil fazer um levantamento do acervo compartilhado. No caso de transferências via torrent, que envolvem milhares de mini-redes, muitas delas ad hoc, além de ser difícil achar alguém que compartilhe tantas músicas (talvez algumas várias discografias?), há questões de ordem prática interessantes. Para se fazer um levantamento de acervo, seria necessário pegar um tracker privado, consultar a página de um usuário brasileiro, anotar todos os torrents compartilhados por inteiro em dado momento, e baixar um por um (não necessariamente até o final), para ver qual o IP que bate em cada swarm específica. Acho meio difícil eles terem feito isso, até por algumas contingências da administração de seeds múltiplos por clientes torrent.
Mas a questão de que redes teriam sido afetadas é longe de ser a única que se encontra nebulosa. A ABDP/IFPI diz não ter identificado os usuários, de modo que, teoricamente, eles só disporiam, no momento, de alguns números IP. Mas segundo me disse em correspondência pessoal Bruno Magrani, do CTS/FGV-RJ, a intenção parece ser processar civil e não criminalmente, e existe a possibilidade de que a ABDP já se encontre com os nomes dos usuários vinculados a cada IP. Se de fato a ABDP já se encontra na posse destes nomes, há problemas sérios em relação ao fornecimento deles pelos provedores de acesso, sem ordem judicial. Caso a ABDP não tenha os nomes, pergunta-se se não seria uma estupidez processar civilmente sem isolar autoria. Não faz sentido. O caminho usual seria representar pedindo abertura de inquéritos policiais para investigar autoria e materialidade de infrações penais, abrindo caminho para processos-crime, e só depois correr atrás de compensação no cível. O que pode explicar uma relutância em processar criminalmente os usuários pode ser o fato de que o exame de provas, em juízo criminal, costuma ser bem mais rigoroso. Um print screen com uma lista de arquivos nunca vai resultar em uma condenação criminal regular. Não que necessariamente vá funcionar no cível, mas a avaliação do conjunto probatório, de modo geral, é bem mais rígida em sede criminal. Nos EUA faz sentido processar com conjunto probatório precário, porque há uma pressão enorme, pelos custos do processo, de se fazer um acordo antes de uma decisão. No Brasil não existe uma pressão de intensidade semelhante, e a qualidade da prova passa a importar, e muito.
No que tange a questões de direito material, ainda há espaço aberto para a discussão de se houve ou não violação de direitos autorais, apesar da literatura nacional costumar identificar – inconstitucionalmente, na minha opinião – o rol de limitações do art. 46 da Lei 9.610/96 (Lei de Direitos Autorais) como sendo taxativo e não exemplificativo. Isso sem contar na infame definição de “lucro indireto”, no caso dos parágrafos do art. 184 do Código Penal. De todo modo, o CTS está com uma proposta de alteração do art. 46 da Lei de Direitos Autorais, procurando se adequar ao procedimento de três etapas da Convenção de Berna, mas ao mesmo tempo garantindo algum espaço de manobra.
A proposta de alteração é a seguinte:
[quote]Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais, a reprodução parcial ou integral, a distribuição e qualquer forma de utilização de obras intelectuais que, em função de sua natureza, atenda a dois ou mais dos seguintes princípios, respeitados os direitos morais previstos no art. 24:
I - tenha como objetivo, crítica, comentário, noticiário, educação, ensino, pesquisa, produção de prova judiciária ou administrativa, uso exclusivo de deficientes visuais em sistema Braile ou outro procedimento em qualquer suporte para esses destinatários, preservação ou estudo da obra, ou ainda, para demonstração à clientela em estabelecimentos comerciais, desde que estes comercializem os suportes ou equipamentos que permitam a sua utilização, sempre na medida justificada pelo fim a atingir;
II - sua finalidade não seja essencialmente comercial para o destinatário da reprodução e para quem se vale da distribuição e da utilização das obras intelectuais;
III - o efeito no mercado potencial da obra seja individualmente desprezível, não acarretando prejuízo à exploração normal da obra;
Parágrafo Único - A aplicação da hipótese prevista no inciso II deste artigo não se justifica somente pelo fato de o destinatário da reprodução e quem se vale da distribuição e da utilização das obras intelectuais ser empresa ou órgão público, fundação, associação ou qualquer outra entidade sem fins lucrativos[/quote]
Há uma petição online para apoiar essa alteração. Enquanto as coisas continuam imprevisíveis, não disponibilizem mais de 3000 arquivos em qualquer rede de compartilhamento, inclusive o Soulseek. Para quem está em trackers privados populares porém obscuros, não vejo motivo para preocupação, mas mantenham o número abaixo de 3000, de qualquer maneira. Caso algum problema surgir, o CTS está estudando a possibilidade de, se não representar diretamente os réus, pelo menos oferecer algum tipo de assessoria jurídica. Se você for um dos 20 felizardos, pode contatar Bruno Magrani via o endereço magrani arroba fgv ponto br para mais informações.
Interessante mencionar que esta ação da IFPI vem, curiosamente, na esteira de uma mega-operação anti-pirataria chamada, sei lá por qual motivo, de I-Commerce (“I” do quê, por gentileza?). Como dano colateral da operação, o maior site de legendas do Brasil, o Legendaz, saiu do ar. Parece que o responsável pelo site também vendia, em um link semi-secreto no mesmo domínio, filmes piratas. Muito inteligente. Alguns outros sites de legenda, e o Compartilhando.org, fecharam por medo de represálias, em efeito dominó. E o maior rival do Legendaz, o Só Séries, festeja não sem uma dose enorme de Schadenfreude, o destino do webmaster do Legendaz.
Juntando um grupo de ações a outras totalmente diferentes - umas contra piratas de verdade, outras contra usuários de redes p2p -, prossegue a associação da pirataria ao compartilhamento de arquivos, algo longe de ser coerente, mas que a imprensa segue perpetuando. Não parece ter sido coincidência que a operação I-Commerce e o anúncio da IFPI tenham ocorrido em sucessão imediata. Sob o rótulo odioso da pirataria, é mais fácil atacar na mídia – e em juízo, se o juiz for desinformado – milhares de usuários de redes de compartilhamento. Estratégia de propaganda básica, mas eficaz.
Os efeitos, para o futuro: nulos, se estivermos considerando o impacto na proliferação de redes [.pdf]. Alguns compartilhadores serão processados e talvez condenados, ouviremos muita bravata da indústria do conteúdo, o compartilhamento quem sabe seja ainda mais estigmatizado pela imprensa, mas de resto, tudo continuará como antes. Não há mais volta [.pdf].
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Seu post foi linkado no blog
Seu post foi linkado no blog Caveat Emptor.
Ele disse uma coisa certa: se a justiça for atrás do SoulSeek, ele acaba na hora. É um Napster raquítico.
A atitude do cara do site de legendas foi cômica, e idiota também. Será que ele acha que, numa situação de perseguição generalizada, o site dele vai escapar também?
EDIT
Estou pensando em citar um longo trecho do post no meu blog, tudo bem?
Meu blog
Meu blog
Marcus escreveu:Estou
[quote=Marcus]Estou pensando em citar um longo trecho do post no meu blog, tudo bem?[/quote]
Fique à vontade, e considere o post licenciado sob uma licença Creative Commons Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada a Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil Commons (ufa!).
EDIT.: Ah, e o I do I-Commerce, creio eu, é de "illegal".
Sou só eu ou tem mais gente
Sou só eu ou tem mais gente meio com a cabeça pesada em relação a essa lista? Pode parecer desespero mas ao contar meus arquivos já passei dos 12 mil e a inclusão do soulseek na lista me deixou um pouco abalado.
Isso que é terrorismo, deu medo até aqui.
Renmero, é um sorteio, com
Renmero, é um sorteio, com poucas chances de vitória. Só comece a ficar preocupado depois de receber a citação, ficar paranóico é deixar a indústria fonográfica ganhar em sua campanha terrorista, como você bem definiu. Enquanto isso, abaixe o número de arquivos compartilhados no Soulseek, ou parta para trackers privados de torrent, exclusivamente.
Pois é, Poelzig. Também
Pois é, Poelzig. Também acho. Mas quem for processado tem que ver bem quais os artistas que constam da tal lista de 3000+, porque caso não sejam de gravadoras representadas pela ABDP/IFPI/RIAA, vai haver falta de legitimidade em relação às faixas em questão.
Só para dar um update, li
Só para dar um update, li confirmação alguns dias atrás - e lamentavelmente perdi o link para a matéria -, de que os processos serão apenas na esfera cível. Além da questão probatória, acho que eles não estão sentindo muita firmeza na figura totalmente nebulosa do "lucro indireto", que foi inserida nos novos parágrafos do art. 184 do Código Penal.