Deadwood e a era de ouro da HBO

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XIII
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Deadwood e a era de ouro da HBO

Podem me chamar de saudosista, mas pra mim o período de 99 à 07 foi marcado por uma variedade de excelentes seriados. Não faltava alternativa para todos os gostos, de simples pacotes por assinatura à elite premium PPV da HBO, havia conteúdo para todos, talvez não na abundância que os mais derivados serviços de streaming oferecem hoje em dia. Mas ao menos na minha opinião, com muito mais qualidade e profundidade de narrativa.

Período de quarentena, crise global, depois de um 2019 de intenso trabalho tive a ''sorte'' de ter sido liberado sem justa causa e consequentemente receber uma quantia considerável com todos os direitos e garantias subescritas em nossa legislação, algo cada vez mais raro, infelizmente. Digressão a parte, pouco antes ou talvez contamitantemente com o surgimento do corona vírus comecei a aproveitar o tempo livre revendo clássicos da era supracitada. Comecei com The Sopranos que continua envelhecendo como vinho, humor negro entrelaçado com o paralelo do submundo do crime organizado e psicanálise num mundo moderno, papel da vida de James Gandolfini, "buon'anima." Na sequência revi The Wire pelo que acredito ter sido a terceira vez, e incrivel como continua surpreendendo, talvez o seriado mais denso que já vi, o tipo de trabalho que com certeza marcou seu autor na história, vai ser discutida por gerações a vir, David Simon tá naquela lista escassa de quem ''zerou a vida'' por assim dizer.

Nunca tinha visto as entranhas de relações político/sociais tão bem expostas quanto The Wire proporciona, até que conferindo minha pasta de torrents me deparo com o filme de Deadwood, lançado ano passado e que há quase um ano estava acumulando teias de aranha por aqui. Como tinha o clássico seriado gravado em SD num também cheio de aranha porta-cds em algum canto resolvi tirar a poeira deste abruptamente cancelado clássico e reassisti-lo para poder então conferir o filme em seu devido contexto.

Ao rever Deadwood, entendo porque tinha muito pouca lembrança da série, se The Wire é criticada ou não apreciada por muita gente por seu diálogo díficil pesado em gírias, Deadwood é tanto amada como odiada por sua verborragia arcaica, leitores ávidos da escrita original de Shakespeare terão um deleite, os demais mortais terão dificuldades. Não invejo quem ficou encarregado de traduzir os diálogos desse clássico, muitas vezes para dizer uma frase simples os personagens passam minutos entrelaçando parábolas e hipérboles em praticamente prosa e verso em um inglês formal e arcaico de dar inveja, quando na eloquência de Ian Mcshane, por exemplo, que é em Deadwood o principal destaque na figura de Al Swearengen. Dono do Gem Saloon, um dos fundadores da cidade e uma das figuras centrais do seriado, vemos em Al uma figura antagônica e catalizadora, tanto homicida como protetor de seus interesses e do vilarejo/garimpo que está prestes a ser anexado pela marcha implacável do progresso. Outro destaque é Timothy Oliphant como o ex-sherife de Montana que se muda para Deadwood para montar uma loja de ferramentas e no decorrer do seriado exala sua fervorosa sede por justiça e ordem.

Deadwood possui um ritmo lento, mistura western com poesia e humor, a justa posição de belos versos com palavrões a torto e a direito divertem. Porém, apesar do mérito de representar e entrelaçar figuras históricas com ficção há muita coisa em tela, muitos personagens em foco e a trama principal conforme o espectador avança se torna cada vez mais claro ser o vilarejo em si, o que pode deixar a experiência de entretenimento em xeque, principalmente às gerações mais novas. Não tem cliffhanger de roer as unhas, não tem construção narrativa recompensadora, não se cria momentum. Não é essa a proposta, o que se vê em Deadwood é a construção do conceito do coletivo, lentamente, de modo que cada parte relevante de um lugar tem peso, e o inevitável confronto deste coletivo com o individual, na figura da ganância, do capital e da influência política.

O seriado termina em meio que um anticlímax, de forma até inesperada, muito devido a um conflito entre Paramount e HBO por desacordo na divisão de lucros, o fato da audiência ter caído pela metade da primeira pra segunda temporada com certeza ajudou. Foi prometido ao seu criador David Milch dois feature filmes de 2h para concluir o seriado, algo que nunca saiu do papel até recentemente. O filme que vinha mofando no meu HD e me inspirou a rever este clássico é um deleite, continua diretamente de onde o seriado parou, se passa 10 anos após os eventos da série e amarra as pontas necessárias sem forçações de barra, tem algumas cenas de western e diálogos emocionantes, não cai na armadilha de satisfação fácil de muitas produções atuais e termina o ciclo desses personagens de forma digna, honrando o conteúdo original.

Nostalgia pura rever um clássico de época em SD, numa velha CRT em tempos de crise, me senti de volta no tempo. Algo que valorizo cada vez mais nesses tempos de obscurantismo. Perdão pelo longo texto, procurei no fórum e não tinha nada sobre Deadwood e como recém a terminei me veio a vontade de escrever algo sobre, não é um seriado fácil, não é de simples apreciação mas não deixa de ser um tremendo feito e serve demais de contraste para o que tem sido lançado recentemente.

P.S: Um detalhe que realmente me incomodou e eu gostaria que tivessem feito diferente foi a utlilização do mesmo ator em mais de um personagem, o que ocorre duas vezes no decorrer das três temporadas. Pra um seriado que custava até $4.5 milhões por episódio é inacreditável.