O Estranho Caso do Cachorro Morto

Foto de Fabio Negro
Forums: 

Sou uma pessoa que sente saudades: desde Xógum, do James Clavell, eu não arregaço um livro como se não houvesse amanhã. Eu matava aula pra lê-lo, eu levava o Xógum pro fliperama, eu não saía com os amigos. Até hoje a melhor leitura da minha vida.  

Então, como acontece com cinema, quadrinhos, música e conversa com os amigos, à medida que a experiência perfeita não se repete, a gente vai ficando cínico, começa a analisar  e desconstruir em vez de apenas consumir. Nos últimos 3 anos eu leio um livro assim como o Dr. Enéas Carneiro lê um eletrocardiograma.

Mas eis que novamente os ingleses vêm salvar o dia. Revirando minha lista com mais de 40 livros a serem comprados, O Estranho Caso do Cachorro Morto, de MARK HADDON, ganhou uma chance.

O livro: Christopher, um garoto com Síndrome de Aspergen (transtorno primo do autismo) um dia encontra Wellington, o cachorro da vizinha, morto no jardim, atravessado por uma ferramenta, e decide investigar o crime. Decide investigar porquê gosta de cachorros, porquê gosta de histórias de detetives e porquê faz parte de sua terapia escrever um livro. A investigação abalará sua rotina metódica e segura e a relação com seus pais.  

Com 280 páginas, mais ou menos, fiz o que nunca tinha feito: li o bichinho em menos de 4 horas, apenas com pausas pra beber suco de uva Maguary.

Sem a tremenda chatice dos Grandes Romances, que gostam de descrever halos de luz iluminando um queijo verde, ou descrever todos os detalhes de um salão de festas, ou descrever o tipo de madeira das mesas de jantar, O Estranho Caso tem uma prosa que voa, em parte porquê é 100% narrado em primeira pessoa, sem trapaças, e em parte porquê é feito de muitos diálogos e poucas descrições.

O primeiro capítulo já brinca com todos os livros de detetives que existem, com sua aura pseudo-noir-vou-lidar-com-o-lado-sombrio-do-Ser-Humano e brinca com a noção de que devemos admirar o detetive porquê sua capacidade de dedução é um dom superdesenvolvido. E claro, as frases curtas.

É mais ou menos assim:

           [quote]Wellington está morto. Isso eu sei porquê ele não está respirando. E porquê tem sangue no focinho dele. Ele foi assassinado. Isso eu sei porquê tem um forcado de jardim atravessando a barriga dele, e eu não acho que alguém fosse enfiar um forcado num cachorro que já estivesse morto.[/quote]

Hahahahahah, tããããããão noir! Tracer Bullet total! O clima é bem esse, Forrest Gump estrelando China Town. E, como China Town, é uma investigação que começa pequena e de repente mobiliza a polícia de várias cidades. Aqui o clichê começa a ficar menos bem trabalhado e o terço final do livro se perde (e provavelmente nem devesse existir), mas dá pra levar. Mas da primeira linha até o momento em que se soluciona o caso Wellington, a mágica funciona, é praticamente um livro perfeito. Daí pra frente, não.

Como um bom livro pós-clássico, Christopher, o protagonista é muito auto-consciente, e muito crítico em relação aos costumes dos outros. Ele parece um personagem de livro, não uma pessoa. É bem recalque de autor que não é chamado pra fazer entrevista no rádio, daí usa o protagonista pra falar tudo o que ele quer falar, mas ninguém perguntou.

Edição bem cuidada, a capa é bonitona, tem algumas fotos, ilustrações, diagramas e equações complicadas de matemática (Christopher está estudando pra tirar grau A em Matemática e Física) e tem uma coisa que eu sempre sinto muita falta nos outros livros: palavras em negrito.

Só o eterno problema da tradução literal é que aqui também se faz presente. Típico da Editora Record, diga-se.

Não bateu a experiência de Xógum, mas por um bom tempo pareceu que iria.
Livro nota 7 que, por não encher o saco quase em nenhum momento, vira uma leitura nota 8,5.!

EDIT.: nesse meio tempo o Dr. Enéas morreu e eu dei meu exemplar pra uma mina cuja idade me tornaria um criminoso caso eu... caso... tchan!