Angel Dust (Enjeru Dasuto)

Foto de Bennett
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A sensação que fica é a de um grande filme que não foi. Angel Dust (ou Enjeru Dasuto), dirigido em 1994 por Sogo Ishii, poderia muito bem ser lembrado ao lado de filmes como Seven, Silêncio dos Inocentes e Memories of Murder como um dos filmes canônicos de serial killer. O fato de que isso não aconteceu (e de que poucos sequer ouviram falar de Angel Dust) se dá em razão do gênero ser apenas o ponto de partida para um filme que tem outras pretensões, que infelizmente não foram concretizadas. A tentativa é louvável, mas o resultado final talvez fosse melhor se Angel Dust se contentasse em ser apenas um filme de serial killer. Já que Ishii ao que tudo indica teve preguiça de realmente levar a sério o próprio filme, caso tivesse optado por algo mais tradicional e batido talvez tivesse feito um filme melhor.

Sogo Ishii, figura famosa na cena punk japonesa, é um diretor cult no mais verdadeiro sentido da palavra. Os seus filmes são difí­ceis de encontrar, e quando são encontrados muitas vezes não têm legenda em outras lí­nguas que não o japonês. Angel Dust, apesar de não ser amplamente disponí­vel, ainda é relativamente fácil de ser encontrado com legendas. Faz parte do que pode ser considerada uma segunda fase na carrreira do diretor, que atualmente também faz parte da banda punk Mach 1.67, acompanhado de um dos maiores atores do cinema japonês atual Tadanobu Asano (nota 11 em 10 na escala cool). Nessa segunda fase de sua carreira, Ishii abandonou o estilo turbulento e caótico de suas primeiras obras, e se dedicou a filmes mais lentos e introspectivos (o fantástico Electric Dragon 80.000V, filme mais conhecido de Ishii, marcaria um retorno í  primeira fase).

Angel Dust, assim, é um filme bastante lento, ocasionalmente chato, que exige uma certa dose de paciência. O que torna ele relevante, e o “grande filme que não foi” a que me referi no iní­cio, é a precisão e habilidade técnica com que Ishii o compôs, e como ele escolheu corretamente todos os elementos necessários para fazer um filme espetacular, mas jogou tudo fora por puro comodismo.

Fotografia, som e edição são tecidos em Angel Dust com virtuosismo, a serviço da construção de um tom e uma ambientação crescentemente desconcertantes. Fica difí­cil não imaginar o quão poderoso este filme poderia ter sido se tivesse optado pelo caminho tradicional dos filmes de serial killer, ou se mesmo divergindo do gênero depois, algum esforço tivesse sido empregado na composição de uma obra mais coesa e coerente. Ishii, aparentemente, queria valer-se da moldura de filmes de serial killer para dizer algo sobre autonomia e relações de gênero no Japão, mas o tiro saiu pela culatra. Apesar de escolher de forma irretocável os ingredientes da história, Ishii não trabalha com um roteiro propriamente dito passados 30 minutos de filme, simplesmente optando por uma narrativa malucona, mal costurada e preguiçosa, que joga algumas idéias fascinantes na tela mas nunca as desenvolve.

O ponto de partida é muito interessante. Toda segunda-feira, í s 06:00 da manhã, um serial killer age em uma linha superlotada do metrô de Tóquio. As ví­timas são sempre jovens mulheres, aparentemente sem nenhuma conexão entre si além do gênero e idade. O serial killer é um trabalhador anônimo como todos os demais do vagão, que age com uma seringa contendo um veneno cujos efeitos são fatais poucos segundos após a picada. A polí­cia, por motivos que são posteriormente explicados, não consegue pegar o serial killer, que continua matando mulheres segunda após segunda, mesmo partindo de uma estratégia que tinha tudo para não funcionar. O setup de Angel Dust é perfeito, e o filme capta algumas preocupações tipicamente japonesas em relação a transportes públicos, anonimato, falta de identidade, solidão, isolamento e paranóia de forma bastante contundente. O esboço de trama que é traçado em seguida também acrescenta alguns elementos interessantes, como cultos religiosos, lavagem cerebral e hipnotismo. Mas Ishii infelizmente deixa a bola cair, e não ata as pontas dos fios.

Estava tudo lá: competência técnica, construção perfeita de um pesadelo urbano plausí­vel, tom sufocante, comentário social relevante...e todo esse potencial não é concretizado. Fica uma coisa meio David Lynch, no mau sentido, e meu entusiasmo inicial foi aos poucos escoando ralo abaixo. Eis um filme que vale a pena ver pelo que poderia ter sido, mas não pelo que é.