Maria-sama ga miteru (Marimite)

Foto de Bennett
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Postei no filme*log e reproduzo aqui:

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Quem, como eu, não é muito familiarizado com o mercado japonês de mangás e animes – apesar de que, é verdade, tenho muito maior contato com ele do que a pessoa média -, fica assustado com o número de gêneros e sub-gêneros existentes, alguns bastante estranhos para o público ocidental. A segmentação é tão bizarra que a impressão, à primeira vista, é a de que se você se esforçar para pensar em um gênero esquisito, vai encontrar um nicho já preenchido por diversas produções que o correspondam. Se levarmos em consideração a pornografia japonesa, as coisas vão até mais longe, com filmes sobre garotas devoradoras de baratas.

Como a Internet é uma coisa maravilhosa, e a como a comunidade de fãs de animação e quadrinhos japoneses é bastante prestativa e numerosa, quem quiser conferir diretamente coisas que jamais seriam distribuídas normalmente por aqui pode se aventurar e acompanhar dezenas de animes e mangás traduzidos por fansubbers e scanlators. É claro que, conforme bem coloca a Lei de Sturgeon, “90% de tudo é merda”, e há tanto lixo entre as séries traduzidas que não é difícil ficar perdido, ou desistir de ler e assistir a material japonês. Mas os 10% que sobram valem muito a pena, e é só prestar atenção nos fóruns que a gente acha coisas interessantíssimas. Caso de Maria-sama ga miteru.

 

 

Maria-sama ga miteru, ou Marimite, para facilitar, é uma série presente em quase todos os veículos da cultura popular japonesa, com exceção do cinema. É, originariamente, uma série de light novels – o equivalente japonês de livros infanto-juvenis –, que depois virou anime e, finalmente, foi adaptada em quadrinhos. As duas primeiras temporadas do anime foram exibidas na TV japonesa, e a terceira está sendo lançada em OVAs (Original Video Animation). Mas vamos falar de nichos: Marimite é uma série shojo, ou seja, voltada ao público feminino jovem, com histórias românticas e melodramáticas. Também é considerada uma série yuri/shojo-ai, que é um rótulo para histórias envolvendo lesbianismo (explícito/pornográfico no caso de yuri, e implícito/romântico no caso de shojo ai). No caso das séries shojo-ai, temos histórias românticas feitas para um público-alvo composto por meninas lésbicas/simpatizantes, bem como marmanjos barbados cuja grande fantasia é ser uma menina lésbica (da espécie que tem olhos grandes e cabelos cor-de-rosa). Eu sei que alguns fãs de animação e quadrinhos japoneses vão chiar com essa definição, mas ela corresponde 100% à realidade. Não posso fazer nada a respeito, e ninguém precisa ter vergonha de assistir, principalmente quando o material é bem escrito.

 

 

Marimite se passa em um colégio católico para moças que é uma verdadeira utopia lésbica. O título significa algo como A Virgem Maria Vela por Ti/Nós ou A Virgem Maria Está Nos Olhando/Vigiando (Maria-sama é como os japoneses chamam a Virgem). Homossexualismo em um colégico católico para moças ou moços é longe de ser algo espantoso, já que é mais ou menos como pulga em cachorro de rua. Uma coisa que assusta em Marimite, entretanto, decorre de diferenças culturais: não há nenhuma ironia, sequer um quê de graça no fato de colégio católico ser um point lésbico dos mais quentes. É tudo a coisa mais natural do mundo, como se os japoneses não tivessem muita idéia do posicionamento da Igreja Católica a respeito do homossexualismo.

E agora eu me antecipo em relação a outras reclamações que os fãs da série podem fazer: “Mas não há lésbicas em Marimite!”. E é aí que você se engana, meu jovem/minha jovem. Em uma escala de 1 a 10 Xuxas, Marimite recebe nota 11. O fato de que há apenas uma personagem que seja obviamente uma lésbica, e que o relacionamento entre as personagens, como alguns dizem, seja retratado como algo maior do que uma amizade e menor do que um caso amoroso, não afastam o quão lésbica essa série é. E nem diferenças culturais: aliás, as diferenças culturais reforçam a interpretação do colégio como utopia lésbica. Não sei até que ponto confiar em antropologia e sociologia de boteco (leia-se, de fóruns de Internet), mas há discussões interessantes sobre homossexualismo no Japão, e como coisas que nós interpretaríamos como evidentemente homossexuais sejam consideradas distintamente por lá. Mas o mais importante é que o próprio tom da série é uma coisa meio “liberação/catarse para lésbicas reprimidas”, com o lesbianismo não sendo posto como tabu, mas simplesmente como algo normal e que acontece e é aceito naturalmente, muito ao contrário do que ocorre em 99% das produções do absurdamente chato cinema gay americano/europeu, nas quais fulano/fulana fica decidindo se vai sair ou não do armário, ou preocupado quanto a sua aceitação na sociedade e fazendo discurso.

 

 

Já li em vários lugares que Marimite não tem história e que é uma produção mais centrada nas personagens, mas esse é um grande absurdo. Há, sem dúvida alguma, uma preocupação em se fazer personagens bem delineadas, mas isso não significa que não haja história. Há história, mas a narrativa é episódica e (primorosamente) concisa, meio difusa e esparsa. De certa maneira, há excesso de história, mas a narrativa é tão sutil e delicada que dá a impressão contrária. E a ênfase é em uma pluralidade de micro-dramas, ao invés de apenas um drama maior. Há um drama maior, relativo ao relacionamento entre a protagonista Yumi (cujo ponto de vista é o mais utilizado durante a série), e sua pretendente/semi-namorada Sachiko, mas o que mais se vê é um amontado de mini-histórias que se resolvem rapidamente, às vezes com dois episódios e um punhado de cenas. Somadas, essas histórias compõem um painel que retrata 4 gerações de estudantes da escola onde se passa a série, a Shiritsu Ririan Jogakuen (Escola Católica Lillian para Moças).

A primeira coisa que o desenho empurra goela do espectador abaixo é o sistema hierárquico e cheio de rituais que domina as relações estudantis. Cada menina do segundo ou terceiro ano escolhe uma menina do primeiro para ser sua “irmãzinha” (sério, e ainda tem gente que defende que não há lesbianismo em Marimite), e guiá-la/orientá-la (sei). Mais ou menos uma coisa meio efebo/erasta. Para concretizar o laço, a menina mais velha passa seu rosário à menina mais nova. É um casamento entre colegiais, em outras palavras, com tudo o que isso implica (uma menina passar mais tempo com outra que não seja sua "irmã" pode significar infidelidade, por exemplo). Trata-se do Sistema Soeur (há uma fixação neste desenho, por sinal, com a língua francesa, com todos os episódios tendo seus títulos exibidos, além de japonês, também em francês). A menina mais velha no Sistema Sœur é chamada de grande sœur, e a menina mais nova de petite sœur.

Além do Sistema Sœur, há também a hierarquia do conselho estudantil, o Yamayurikai, composta por três famílias que cobrem três gerações de estudantes (uma para cada ano): Chinensis, Foetida e Gigantea. As meninas mais velhas de cada família recebem o título de "rosa", de modo que sempre temos uma Rosa Chinensis, uma Rosa Foetida e uma Rosa Gigantea. O nível logo abaixo é o dos botões de rosa: Rosa Chinensis en boutoun, Rosa Foetida en bouton e Rosa Gigantea en bouton. Finalmente, no nível mais baixo, há uma petite sœur para cada um dos botões de rosa. Quando uma rosa se forma, o botão assume seu lugar, e a petite sœur se transforma em botão. O ciclo se repete indefinidamente.

 

 

A história começa com Yumi, uma menina tímida e com problemas de autoconfiança, sendo (quase que) acidentalmente escolhida como a petite sœur de uma das Yamayurikai, Sachiko (então Rosa Chinensis en boutoun). E daí o desenho engata uma história de peixe fora d'água, com Yumi se familiarizando com as tradições da escola e as outras Yamayurikai, em uma série de micro-dramas que às vezes soam bastante exagerados mas, curiosamente, nunca artificiais, como por exemplo a dificuldade que Yumi tem para telefonar para Sachiko por temer que não a própria, mas um parente desconhecido, venha a atender o telefone e ela fique sem saber como cumprimentá-lo corretamente. A cena demora uns cinco minutos, e a julgar pelo monólogo interno de Yumi a situação dela é tão dramática quanto a de uma pessoa que acabou de descobrir que tem câncer. Por incrível que pareça, não fica ridículo, e você sente, de certo modo, a dor da personagem.

 

 

Pela descrição que eu fiz, aliás, a série pode soar meio babaca, mas longe disso. É muito bem escrita e trabalhada, com personagens memoráveis e lacunas estrategicamente colocadas, que dão bastante material para especulação. O tom, paradoxalmente, é de uma leveza opressiva, extremamente difícil de se conseguir intencionalmente, e mesmo acidentalmente (caso de Marimite, na minha opinião). Por mais que o desenho seja ameno e agradável, com várias cenas de humor, a sucessão de micro-dramas (e alguns dramas realmente grandes) acaba tendo um efeito meio sufocante, principalmente quando você se senta para ver uma temporada inteira (e é fácil pular de um episódio para outro, perdendo a noção do tempo). No final das contas, apesar do desenho se conformar a um nicho específico do mercado japonês e respeitar suas convenções, fica a impressão de que se está vendo algo bastante acima da média. No início, Marimite não causa muita comoção e parece um desenho esquecível...mas o efeito cumulativo é razoavelmente devastador. Ultimamente eu tenho sentido cada vez mais dificuldade para encontrar algo que me emocione no cinema, e Marimite me marcou profundamente, por maiores que sejam as distâncias culturais e, particularmente, de nicho, em relação ao que eu costumo ver habitualmente.

Resumindo, é um desenho muito bonito, que vale a pena assistir. Quem quiser acompanhar a série e os mangás está bem servido por fansubbers e scanlators:

Anime (português)

Anime - Primeira temporada (inglês)

Anime - Segunda temporada (Haru) (inglês)

Anime - Terceira temporada (inglês)

Mangá (inglês)

Foto de João Lucas

Pela história pura e simples da série provavelmente eu nunca assistiria mas seu hype como sempre me convence. : )

 Já estou baixando.