Games incomodam e viram arte

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RARAMENTE OS cadernos de cultura falam sobre games. Em geral, as críticas são técnicas e não observam o valor narrativo dos jogos como uma mídia privilegiada para contar histórias e levantar questões. E, sobretudo, como um referencial cultural cada vez mais compartilhado.

Dados sobre hábitos culturais em algumas capitais, divulgados recentemente pelo Ministério da Cultura, mostram que, em todas, a prática de "jogar games" é mais comum do que "ir ao cinema" (em São Paulo, por exemplo, os números são 13% e 8,7%, respectivamente).

É um bom momento para pensar sobre esse fenômeno. A narrativa dos jogos vem atingindo momentos notáveis. Um exemplo é o recente "Call of Duty: Modern Warfare 2 (MW 2)". As análises mais corriqueiras vão dizer que é um excelente jogo de tiro. Dificilmente vão notar que ele trata da questão da moralidade da guerra, o mesmo tema de Barack Obama em seu discurso de aceitação do Prêmio Nobel da Paz.

Em um trecho do game -que pode ser evitado-, o personagem controlado pelo jogador é um agente da CIA infiltrado em uma célula terrorista ultranacionalista na Rússia. Forçado a participar do massacre de centenas de civis em um aeroporto, ele protagoniza a atrocidade. O que fazer, disparar? E em que outras missões disparar também se justifica?
Estão presentes, aqui, os embates morais clássicos, encarados a partir da lógica do terrorismo e da guerra contemporânea. "Modern Warfare 2" coloca o jogador em situações que lembram a ele sua condição de ser moral.

A cena é perturbadora, como um filme de Samuel Fuller. A diferença é que a imersão do jogo torna o seu impacto bastante diferente. Qualitativamente diferente, e não "maior" ou "menor". É justamente por conta de preconcepções quanto aos efeitos da "interatividade" que os jogos costumam ser tratados diferentemente dos filmes ou dos livros. Isso tanto dificulta sua emancipação enquanto arte quanto reforça sua conexão com o mercado. É um exemplo da mesma ansiedade regulatória que acompanhou o nascimento da indústria cinematográfica norte-americana. Ansiedade que resulta até em pânicos morais e censura. Que, ironicamente, acabam ajudando a divulgar os jogos.

Para encarar os jogos com um olhar diferente, vale falar também de diversidade sexual. No ano passado, o jogo "Mass Effect" causou polêmica em razão de uma relação entre uma humana e uma personagem alienígena. Em "Fable 2", o protagonista, um(a) garoto(a) órfão(ã), pode -se quiser- estabelecer relações afetivas com ambos os sexos.

Ao saber que os games de hoje colocam os jogadores como protagonistas de massacres terroristas ou de relações homossexuais, muitos vão se sentir saudosos da época de "River Raid" e "Pac-Man", em que as coisas eram mais simples. É exatamente esse o sinal de que os jogos viram arte. Incomodam do mesmo jeito que incomodava o cinema de Hollywood dos anos 70.

Mantê-los na periferia (ou como rebeldes sem causa) das artes "sérias" acaba gerando um tratamento irracional, que resvala em decisões judiciais e projetos de lei que enxergam os games como se estivessem fora da garantia constitucional de liberdade de expressão.

Neste ano, vamos acompanhar o destino do projeto de lei do senador Valdir Raupp (PMDB-RO), que estabelece a proibição de jogos ofensivos "aos costumes e à tradição dos povos". Acompanharemos também lançamentos que apostam no experimentalismo, como "Heavy Rain".

Entre "Heavy Rain" e Valdir Raupp, há um universo complexo, ao qual um pouco mais de atenção não vai fazer mal nenhum.


PEDRO MIZUKAMI é coordenador do projeto Game Studies do CTS-FGV

Publicado na Folha de S. Paulo

Foto de agraciotti

ótimo tópico. Muito relevante. Não resta duvida que os games oferecem uma experiência tão rica e intensa que tudo o que o cinema faz hoje com a tecnologia disponível é tentar se aproximar dele (vide a bosta do Avatar, que conseguiu enganar todo mundo ao oferecer uma experiência próxima dos videogames).

Eu lembro da experiência de chegar ao fim de Bioshock, Crysis ou Prince of Persia da mesma forma que lembro da primeira vez que vi filmes como 2001 - Uma Odisséia no Espaço, Clube da Luta, Mulholand Drive ou Era uma Vez no Oeste: uma experiência transformadora e altamente significativa para formação da minha pessoa (sem exagero nenhum).

Ontem mesmo terminei o Call of Juarez 2: Bound in Blood. Um jogo que no começo tava achando um saco (e a ação muda muito pouco ao longo do jogo), mas que foi me conquistando pela narrativa, pelo excelente roteiro e desenvolvimento de personagens. Foi o melhor "filme" de Western que vi em muitos anos, inclusive.

Esse Mizukami lembrou bem ao comparar a situação dos games hoje com o começo do cinema. Já li outros autores que fazem essa relação. Se o cinema levou um tempo para ser aceito como a "junção de todas as artes", os games talvez elevem essa junção a um novo nível, unindo tudo o que foi feito antes com tecnologia e interação. Bom seria se todos reconhecessem isso e os games tivessem mais espaço na cultura moderna.

 

Foto de Leão da Barra

O Cracked.com fez uma matéria listando 10 jogos que poderiam ser considerados arte moderna, explicando os porquês das escolhas e comparando-os com obras de artistas modernos.

[quote=Cracked.com]

Like comics, video games are a bastard medium, perpetually trapped in the purgatory of “low art.” No matter how well-crafted or sweeping or gorgeous they are, they almost never get auctioned off to millionaires with paddles. But even comics have had some success: The graphic novel movement is giving them some art house cred, R. Crumb drew some parents boning their kids and got a freaking Academy of Arts and Letters Award, and I heard Jeff Koons grudgingly recognized them as “a conceivable medium for the conveyance of art-like imagery.”

Well, the next time you get cornered by the Beret Patrol, or just want to flex your gaming-snob nuts, here are 10 games that would be hanging in museums if flat screens weren’t so damned expensive.

[/quote]

Segue a lista. Vale a pena dar uma olhada