What Waffles?

Foto de Bennett

Já se passaram mais de duas semanas desde a morte do OiNK, a maior loja de discos (gratuita) do mundo, e do desbandamento do que era provavelmente a mais relevante comunidade de compartilhamento de música na história do compartilhamento de arquivos. Um egresso do OiNK chegou a comparar a destruição do site com a destruição da Biblioteca de Alexandria.

Antes que alguém aponte o exagero, convém defender a afirmação, porque ela não é nada equivocada. Guardadas as devidas proporções, o OiNK era, de fato, a Biblioteca de Alexandria da música. Torrents aos milhares formavam um acervo superior ao de qualquer loja de música e ao de qualquer discoteca (no sentido de coleção de discos). O OiNK tinha de tudo. Quer dizer, potencialmente de tudo. Se eu quisesse um disco do Tiririca talvez não encontrasse de cara. Mas alguém da comunidade com certeza teria o disco, e faria um rip diante de um pedido feito no ótimo sistema de solicitações do site. Regras rígidas de manutenção de ratio - ou seja, a proporção entre o que você baixa e sobe em termos de dados brutos -, moderação reacionária (no bom sentido), e uma massa de mais de 180.000 usuários garantiam que não apenas um enorme acervo de música fosse disponibilizado a qualquer momento, mas que incentivos para que usuários subissem seus próprios discos não faltassem. Similar em amplitude de acervo, o OiNK era diferente da Biblioteca de Alexandria pelo fato de que é impossível destruir informação tão fácil de se reproduzir e armazenar. O local de reunião foi embora, a arquitetura que viabilizava o compartilhamento se foi, mas os dados permanecem em poder dos usuários. Colocar o site fora do ar, então, é mais ou menos como eliminar, de um ponto central da rede, todo esse acervo gigantesco de música...mas sem fazer o acervo em si desaparecer.

Em uma época marcada pela caducidade dos modelos de negócios de grandes gravadoras, a destruição do OiNK foi um ato de barbarismo motivado por medo e ignorância, amparado por legislação anacrônica, pautada em fundamentação filosófica e econômica bastante equivocada, ainda mais em uma época de descentralização das estruturas de produção e distribuição de informação. Os discursos tradicionais de fundamentação da propriedade intelectual persistem, os remédios legais são fortes, ação policial e judicial são freqüentes, mas ainda assim nada tem surtido efeito em relação ao compartilhamento de arquivos.
O compartilhamento de arquivos veio para ficar e não há mais retorno. Além do tão alardeado "Hydra Effect", apelido que recebeu o antigo fenômeno de que, fechando-se um ponto de distribuição das comunidades de compartilhamento de arquivos, pelo menos outros dois surgem (isso se verifica desde o fim do Napster), não se mata uma comunidade de milhões de compartilhadores, com ethos e normas sociais próprios e cada vez mais fortes, de uma hora para outra. Não é fechando-se o Pirate Bay, não é fechando-se o Demonoid, não é fechando-se o OiNK, derrubando-se servidores ed2k, ameaçando-se usuários com ações judiciais, fortalecendo-se normas de proteção à propriedade intelectual, investindo-se em sistemas de DRM e propaganda anti-"pirataria" (termo cada vez mais discutível), que se acaba com o compartilhamento de arquivos. O compartilhamento de arquivos depende de normas sociais de compartilhamento, e segue uma ética peculiar (que já existia antes da Internet) de partilha de bens culturais (afinal, cultural é algo essencialmente público), que é muito mais poderosa do que qualquer processo ou lei redigida por grupos de pressão industriais. O bonde partiu em 1999, e a indústria perdeu o lugar.

1999, época em que o Napster (e a Napster, Inc) nasceram, era o momento de agir para a readaptação de modelos de negócios. Ainda era possível, em alguma medida, preservar os modelos antigos por um certo período de tempo. Os modelos de negócios tradicionais estavam fadados ao desaparecimento desde a abertura da Internet ao público, mas ainda era possível assegurar alguma sobrevida a partir da cooptação das bases comunitárias do compartilhamento de arquivos, desde que isso fosse feito nas origens do fenômeno. Outra oportunidade perdida foi a de se aproveitar as estruturas do Audiogalaxy, um sistema bem à frente de seu tempo, que foi soterrado por ação industrial. Aniquiladas as tentativas empresariais de se estabelecer sistemas de compartilhamento de arquivos, a comunidade acabou ficando com a responsabilidade de tocar as coisas para a frente, fora do ambiente institucional de uma empresa, e munidas de ferramentas abertas a inovação (software livre, em essência), as comunidades foram muito mais adiante do que qualquer empresa poderia ir. Lideranças ad hoc, fundos angariados a partir de doações, tempo livre gasto de maneira eficiente, criatividade em gestão sem as barreiras burocráticas tradicionais, e ação coletiva organizada, motivada pelas normas sociais do compartilhamento, executadas por meio de tecnologia (vide os sistemas de ratio dos trackers fechados), resultaram nesse monstro extremamente bem-vindo que é o compartilhamento de arquivos oito anos depois do Napster.

E é assim que depois do óbito do porco rosa, surgem dois novos focos de reunião dos ex-oinkers (eles se chamam por esse nome). Há identidade coletiva, ainda que tênue ("Todos nós eramos parte dessa família que era o OiNK, e fomos despejados de nossa casa"), desejo de sangue em razão da ruína de uma coisa muito bela, e a vontade e determinação de colher os cacos e reconstruir o lar, dando continuidade ao legado suíno. Alan Ellis, o técnico de informática inglês que era responsável pelo OiNK (e se identificava como OiNK no próprio site, cujo nome completo era OiNK's Pink Palace), e o desaparecido e feroz e autoritário Too Much Time (vulgo TMT), já deixam saudades, mas também know-how e um modelo de administração para trackers bittorrent de música que funciona. Que funciona extremamente bem. Também deixam uma cultura, uma postura em relação ao compartilhamento de arquivos, que persiste mesmo na ausência de suas figuras.

Foi muito curioso acompanhar a formação de dois novos trackers que adotam o modelo OiNK, o What CD e o Waffles FM. Ambos ainda estão em suas fases iniciais de desenvolvimento, e o What CD, particularmente, está sofrendo de problemas técnicos frequentes, talvez em razão de má adminsitração. O Waffles FM, por outro lado, tem funcionado melhor, mas tem alguns moderadores um tanto imaturos, que estão criando uma mini-rixa com o What CD, quando na verdade estão no mesmo barco, e são um site irmão. Fora isso, a comunidade está lá. E se recompondo. Uma pessoa convida a outra, e já vemos rostos (avatares) e nicks familiares em ambos os sites. Ainda sinto falta da Faerie, que sempre postava seus fofos obrigados nos torrents de música ambiente no OiNK, mas ela já deve estar por lá.

O número de torrents? Ainda muito longe do que era o OiNK. Mas vejam bem, são duas semanas apenas. E os torrents já são mais de 20000 em cada site. Seguindo-se o movimento habitual de ascensão e queda das comunidades de compartilhamento de arquivos, ambos os sites caminham em direção a tornar-se, cada um, um substituto no mínimo aceitável para o OiNK, com potencial para superá-lo, inclusive. E se um dia vierem a cair, a situação se repetirá.

Nos fóruns do What e do Waffles, as pessoas agora se preocupam com questões políticas básicas da comunidade. É quase uma Assembléia Constituinte. Que erros do OiNK não devemos repetir? Devemos manter a regra dos avatares bonitinhos? Quais formatos de arquivos são aceitáveis? Que tipo de moderação queremos? Tudo feito com base no modelo OiNK de ser - para manutenção ou alteração de regras - e no espírito da comunidade que perdeu seu local de reunião, mas manteve o acervo musical em seus computadores e está disposta a colocá-lo à disposição de qualquer interessado, em outros locais de reunião.

Uma massa altamente qualificada de compartilhadores, escolada nos padrões de rigidez, qualidade e compartilhamento do OiNK, foi deixada sem casa. Mas apesar do luto continuar, a diáspora foi breve. What e Waffles que o digam.

Foto de rodriguez

Bennet sintetizou bem o espírito pós-oink de compartilhamento de música que gerou discussões em todo lugar, inclusive aqui no Joio. Não tenho nada a acrescentar, participei da aflição quando o site fechou, da busca de mais informações possíveis em diversas fontes e observei os novos trackers começarem a engatinhar com (waht.cd) ou sem hype (waffles) e os trackers já existentes absorverem a massa de usuários "escolada nos padrões de rigidez, qualidade e compartilhamento do OiNK".

Massa essa que claramente é a mais exigente e voraz consumidora de música na atualidade. Não importa mais o tipo de teconologia de compartilhamento, em todo lugar essas pessoas vão dar seu jeito de consumir música. E música somente.

Foto de Guybrush Threepwood

Muito bom mesmo o texto, tô sentindo falta das estrelinhas para votar.

Foto de webster

Perfeito o texto :) 5 estrelas :) 

Foto de Bennett

Pessoal, a base de dados do what.cd foi comprometida, e tem algum engraçadinho enviando emails ameaçadores em nome da RIAA. Direto para o lixo com esses emails, e sem neuras.